quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carta Política do VIII Encontro Nacional da Articulação Semiárido Brasileiro (VIII EnconASA)


Trajetórias de luta, resistência e conquistas para a superação da pobreza e construção da
cidadania no Semiárido.


Nós, 700 participantes do VIII EnconASA, agricultores e agricultoras familiares, povos indígenas,
população negra, representantes dos povos e comunidades tradicionais – quilombolas, extrativistas,
ribeirinhos(as), pescadores(as) artesanais, geraizeiros(as), caatingueiros(as), vazanteiros(as),
comunidades de fundo de pasto, quebradeiras de coco  – representantes de organizações da
sociedade civil com atuação no Semiárido, nos encontramos de 19 a 23 de novembro de 2012, em
Januária – MG, para celebrar as nossas conquistas na construção do projeto de desenvolvimento
sustentável da região, fazer uma análise crítica do atual modelo de desenvolvimento e definir
orientações e estratégias para o futuro de nossa ação.


I - Celebrar nossas conquistas
O Semiárido vive um importante movimento social de inovação para a convivência com  a região.
Uma das conquistas mais visíveis se expressa nas mudanças observadas na paisagem com a
instalação de uma densa malha hídrica composta por mais de 600 mil cisternas de placa. A
democratização do acesso à água potável para mais de três milhões de homens e mulheres, após
séculos de exclusão, é o resultado de trajetórias de luta e resistência e se materializa em conquistas
na superação da pobreza e a construção de cidadania.


O acesso à água potável exerce papel determinante para a superação da miséria. Segundo a Fiocruz,
as famílias que possuem cisternas estão três vezes menos sujeitas aos riscos de diarreia do que
aquelas que ainda não a conquistaram. Isso explica em grande medida a diminuição dos índices de
mortalidade infantil verificados na região na última década.


Há profundas transformações nas formas com que as famílias agricultoras se reconhecem e são
reconhecidas. A participação direta no processo de implementação do programa, a valorização de
sua cultura e de suas capacidades vêm fortalecendo a autoestima e autonomia, permitindo que as
algemas da sujeição ao poder local, seja ele econômico, social ou político, sejam rompidas.
Um diversificado acervo de inovações está sendo produzido e disseminado com base na valorização
dos saberes acumulados pelas famílias e pelos povos e comunidades tradicionais. A sistematização
de experiências e a realização de intercâmbios  horizontais entre agricultoras e agricultores
experimentadores  vêm fortalecendo a constituição de redes como espaço privilegiado para
mobilização de novos conhecimentos e práticas para a convivência com o Semiárido.


As mudanças estruturais produzidas no  Semiárido ganham um contorno ainda mais marcante
diante da seca que se instalou na região, considerada a mais severa dos últimos 40 anos. São as
cisternas de placas que vêm servindo de suporte para o abastecimento de água potável para
milhões de pessoas em todo o Semiárido. A segurança e soberania alimentar das famílias está sendo
ampliada graças à rede de infraestruturas de abastecimento de água para produção de alimentos,
estruturada pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que dinamiza  quintais produtivos, 2
criação de animal, roçados agroecológicos, práticas agroflorestais, manejo da  caatinga e  o
beneficiamento da produção. A maior evidência de sucesso dessa ação está no fato de que, mesmo
diante da severidade desta seca, muitas famílias seguem comercializando sua produção nas feiras
agroecológicas ou entregando para o  Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e  o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).


São essas experiências  acumuladas na ação da  Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) que têm
aportado contribuições efetivas para o rompimento dos ciclos de reprodução da  pobreza e da
miséria. Seus aportes conceituais e metodológicos se constituem num dos alicerces importantes do
“Água para Todos” do Plano Brasil Sem Miséria do Governo Federal.


A amplitude e consistência desta ação têm contribuído diretamente para a visão do Semiárido como
um lugar de fartura de natureza e de cultura popular, contrariando a visão de uma região destinada
à pobreza por conta de suas características ambientais. A ASA afirma na prática que a convivência
com o  Semiárido se faz por meio da agroecologia que valoriza e articula os recursos  naturais, a
sabedoria e criatividade do povo que vive e trabalha na região.


Iniciativas de promoção da segurança e soberania alimentar, dos bancos e casas de sementes, de
educação contextualizada, de assessoria técnica, de auto-organização das mulheres, de acesso  à
terra e aos territórios, dos fundos rotativos solidários,  da comunicação popular,  de acesso aos
mercados locais e de economia popular e solidária ganham progressivamente qualidade, escala e
unidade de ação em rede. Eles apontam para um novo modelo de desenvolvimento para o
Semiárido.


Estamos, no Semiárido, diante de uma experiência singular de construção, implementação e gestão
de políticas públicas fundadas na participação direta e ativa da sociedade. Os programas da ASA não
teriam a amplitude e a relevância que alcançaram sem a construção de parcerias com o Estado
brasileiro, especialmente com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate  à Fome (MDS),
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Companhia
Nacional  de Abastecimento (CONAB). Merece destaque  o permanente apoio  e compromisso  do
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).  Compartilhamos estas
conquistas  com todos os nossos  parceiros públicos, privados, organismos de cooperação, dentre
tantos outros!


Reafirmamos que estas conquistas são das famílias  agricultoras, dos povos  indígenas  e  das
comunidades tradicionais  do  Semiárido! São quilombolas, extrativistas, ribeirinhos(as),
pescadores(as) artesanais, geraizeiros(as), caatingueiros(as), vazanteiros(as), comunidades de fundo
de pasto, quebradeiras de coco, dentre outras.


A ASA construiu capacidade gerencial para gestão de recursos públicos de forma rigorosa e
transparente, fato que vem sendo unanimemente reconhecido pelos órgãos de controle do Estado.
Além disso, seu método de mobilização social para execução das políticas públicas tem assegurado
eficácia na alocação dos recursos do Tesouro Nacional. Os resultados alcançados afirmam o papel
determinante que a sociedade civil pode e deve cumprir para a implementação de projetos de
desenvolvimento sustentável para todo o País. Isso significa que, para cumprir sua missão, o Estado
não pode preterir da participação forte a ativa das organizações sociais na concepção, na execução
e no monitoramento de políticas públicas.


II - Expressões de um outro Desenvolvimento
Celebrar conquistas nos fortalece para enfrentar os grandes desafios que o momento presente
impõe, para garantir que as  identidades  do  Semiárido superem  as  causas da miséria social e 3
devastação ambiental.  Somados aos históricos bloqueios estruturais, como a brutal concentração
de terras, as famílias, povos e comunidades do Semiárido enfrentam o acirramento de disputas por
seus territórios e pelos bens comuns da região. Estes territórios de impressionante riqueza
socioambiental, com suas caatingas, cerrados, várzeas, rios e chapadas foram preservados ao longo
do tempo pelos povos que os habitam. Hoje são objeto de interesse de empresas mineradoras, do
carvoejamento, dos monocultivos de eucalipto, dos grandes projetos de irrigação, das barragens e
grandes obras hídricas, a exemplo da Transposição do Rio São Francisco. O avanço desses grandes
empreendimentos, muitos deles operados pelo capital internacional, tem o apoio político e
financeiro do Estado brasileiro e criam condições favoráveis para o desdobramento de criminosos
processos de grilagem e violação de direitos territoriais das populações do Semiárido.


Assistimos  no VIII EnconASA o testemunho dramático de  comunidades inteiras ameaçadas de
expulsão de suas terras na Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, para que cinco grandes
empresas implementem, com infraestrutura e recursos públicos, um grande projeto de irrigação. No
Norte de Minas Gerais, que sediou o encontro,  o povo Xacriabá e  populações tradicionais são
expulsas e os cerrados são devastados para a implementação de monocultivos de eucalipto. Estas
são situações emblemáticas de violação de direitos  e são apenas exemplos de situações que se
repetem  nos territórios do  Semiárido. São muitos os registros e testemunhos de violação de
direitos, expulsão de famílias agricultoras, povos e populações locais, e destruição ambiental.
A dura estiagem que vivemos, mais do que apenas uma das cíclicas secas já conhecidas pelos povos
do Semiárido, evidencia o quanto os efeitos das mudanças climáticas já estão colocados. Na região,
esses efeitos podem ser devastadores.


Diante desse contexto, o abandono da agenda da Reforma Agrária e regularização fundiária é
contraditório com o justo objetivo de superação da pobreza e da miséria. Programas de distribuição
em larga escala de uma única variedade de sementes e a ameaça dos transgênicos produzem perdas
de patrimônio genético conservado pelas comunidades locais. A proposta do governo de ampliar as
áreas de irrigação sob o argumento de se constituir na grande alternativa para a produção de
alimentos e enfrentamento da seca na região reitera a lógica concentradora de água e riqueza e
contraria os avanços já conquistados na convivência com o  Semiárido. Seguir por este caminho é
aprofundar as desigualdades sociais e reeditar os velhos paradigmas da indústria da seca que
também se materializa na implantação das cisternas de plástico.


No âmbito das relações do governo com as organizações da sociedade civil enfrentamos, a um alto
custo,  a ausência de um marco regulatório, que traz como consequência a  criminalização e a
diminuição de repasse de recursos. Organizações parceiras de ações públicas se veem à mercê da
insegurança jurídica em relação a convênios e contratos, que as expõe de forma recorrente a
compreensões enviesadas dos órgãos de controle e a uma sistemática tentativa de deslegitimação
de nossas ações por parte da grande mídia. Sentimo-nos desrespeitados.


III - Projetar nosso futuro
Depois de 13 anos de construção coletiva, a ASA chega num momento em que a universalização do
acesso à água para o consumo humano está num horizonte muito próximo. O Programa Um Milhão
de Cisternas (P1MC) até então fora o carro-chefe das principais ações dessa rede. Torna-se iminente
a necessidade de construirmos novas frentes nessa luta constante da convivência com o Semiárido.
Reafirmamos o projeto político da ASA em contraposição ao projeto centralizador e hegemônico do
capitalismo e, neste  contexto, buscamos fortalecer o protagonismo de agricultores e agricultoras
familiares, povos e comunidades tradicionais. Continuamos apostando em soluções 4
descentralizadas que atendam diretamente às famílias e as comunidades do Semiárido brasileiro na
perspectiva da garantia de seus direitos.


Mantemos o nosso processo pedagógico na lógica da educação contextualizada, baseado na troca
de saberes e no intercâmbio das experiências, visando a capacitação das pessoas, a formação da
consciência crítica, o fortalecimento da mobilização social e a construção de uma identidade  em
comum na diversidade dos povos do Semiárido.
Assim sendo, apontamos os rumos por onde queremos continuar a nossa caminhada e os
compromissos que queremos assumir:


1. Mesmo com a perspectiva  iminente de universalização do acesso à água para o consumo
humano, entendemos que se faz necessário ampliar as ações do P1MC com a inclusão de
municípios que necessitam desse programa por apresentarem características semelhantes de
privação do acesso à água potável, porém estão fora do chamado Semiárido legal.


2. É necessária também uma vigilância permanente da sociedade civil sobre os recursos
repassados aos governos estaduais e outros parceiros do Governo Federal, para que eles de
fato cumpram o seu papel, realizem os investimentos e garantam o abastecimento de água a
toda a população.


3. Ao lado da segurança hídrica, é preciso fortalecer as ações de segurança  e soberania
alimentar e nutricional, investindo na diversificação da produção, nas diversas formas de
estocagem para alimentação humana e animal, na valorização da cultura alimentar local, nos
quintais produtivos, na criação de animais, manejo da caatinga, beneficiamento de produtos,
etc., contribuindo para que as famílias acessem as políticas públicas de inclusão produtiva,
facilitando o acesso ao crédito e à comercialização de alimentos via PAA, PNAE e outros. Esses
programas públicos são uma conquista dos últimos anos e precisam estar cada vez mais
consolidados e ao alcance  da agricultura familiar camponesa, povos e comunidades
tradicionais e consumidores.


4. Reafirmamos a importância de se implementar as ações propostas no ATLAS NORDESTE da
Agência Nacional de Águas para garantir o abastecimento de água potável das áreas urbanas.
5. Nos marcos de nossa ação, pretendemos fortalecer e ampliar o Programa Uma terra e Duas
Águas como ação determinante para seguir avançando na ampliação e diversificação das
infraestruturas hídricas voltadas ao atendimento de suas múltiplas demandas, na produção
de alimentos e no fortalecimento da assessoria técnica e acompanhamentos voltados para a
convivência com o Semiárido por meio da perspectiva agroecológica.


6. Exigimos do Estado brasileiro uma política de Assessoria Técnica e Extensão Rural (ATER) que
de fato fortaleça a agricultura familiar camponesa, que respeite as características culturais e
ambientais do Semiárido e tenha como eixo a construção coletiva de conhecimentos baseada
no papel das agricultoras e agricultores experimentadores e na troca horizontal de
conhecimentos.


7. Sementes crioulas, sementes da paixão, sementes da gente, sementes da fartura, sementes
da resistência  são alguns nomes com os quais foram batizadas as diversas iniciativas de
resgate, conservação e multiplicação das sementes nativas e adaptadas no Semiárido. Esta é
uma causa a ser abraçada pelo coletivo da ASA e uma ação prioritária que deve ser objeto de
diálogo com o Estado para a criação de um programa a ser financiado e executado nos
mesmos moldes do P1MC e P1+2.5


8. Não podemos ficar indiferentes às situações de violência que se impõem sobre as mulheres,
tendo, como pano de fundo, a divisão sexual do trabalho. Daí a necessidade de retomar e
fortalecer a auto-organização das mulheres, com vistas a contribuir com o projeto político da
ASA a partir de uma perspectiva feminista de transformação da sociedade e de superação das
desigualdades entre homens e mulheres.


9. Da mesma forma, não podemos ignorar  a exclusão que sofrem os povos do Semiárido aos
diversos meios de comunicação, especialmente, às rádios e televisões comunitárias, que
funcionam como um instrumento de reafirmação da identidade e de fortalecimento das lutas
pelos seus direitos. Sonhamos com o dia em que nosso povo exerça o seu direito de
comunicar com a mesma autonomia, força e resistência com que constroem sua história de
convivência com o Semiárido.


10. Reiteramos que a democratização do acesso à terra e a garantia dos direitos territoriais das
diversas  populações e identidades do  Semiárido é condição determinante para o
enfrentamento estrutural  das desigualdades históricas que marcam  a região. Cobramos do
governo da Presidenta Dilma Rousseff, coragem e determinação para enfrentar os interesses
das oligarquias e do agro e hidronegócio e realize uma verdadeira reforma agrária e garanta
efetivamente os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais.


A ASA entende que avançar nesse caminho só é possível na medida em que avançamos na
consolidação das relações entre a sociedade civil e o Estado.  Neste contexto, exigimos que a
proposta de marco regulatório, já elaborada por uma comissão de poder público e sociedade civil,
seja enviada em caráter de urgência pela Presidenta ao Congresso Nacional. Enquanto rede, vamos
continuar investindo na mobilização social e pressionando o Estado Brasileiro pela aprovação do
marco regulatório da sociedade civil sem o qual as organizações perderão gradativamente sua
capacidade de gestão de projetos com recursos públicos e  continuarão enfrentando processos de
criminalização.


Todos esses passos nos levarão - Estado e sociedade - à construção de uma POLÍTICA NACIONAL DE  CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO.


O VIII EnconASA nos reencanta, nos revigora e nos compromete cada vez mais a defender a Vida e a
dignidade das famílias, dos povos e das comunidades tradicionais do Semiárido brasileiro.
É no Semiárido que a vida pulsa! É no Semiárido que o povo resiste!
Januária/MG, 23 de novembro de 2012.


Adriana Leal
Comunicadora Popular
Diocese de Pesqueira/Cáritas Diocesana

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